quarta-feira, 11 de junho de 2008

INTRODUÇÃO.

Escreveu Goethe que quem deseja ter razão, decerto a terá pelo mero facto de possuir língua. A (discutível) hipérbole que esta sentença transporta consigo não pode, contudo, deixar de fazer sentido à luz da definição da disciplina de Retórica, por excelência a esfera de teorização da técnica de convencer um interlocutor de algo, através do discurso - oral, escrito ou visual. De facto, e numa época em que a cada segundo se multiplicam as formas de chegar, a todos e a cada um de nós, inovadoras formas de apresentar mensagens e conteúdos comunicacionais, não pode nunca ser arredada dos estudos humanistas a noção de que é na persuasão, no poder de argumentação e nas condições de receptividade de uma audiência que se constrói uma significativa parte da realidade, tal e qual nós a apreendemos. E, assim sendo, não poderia nunca a Retórica deixar de ocupar um lugar de destaque no estudo das ciências da comunicação. O primor da eloquência e o domínio argumentativo que essa condição consequentemente oferece a quem a possui são, hoje tal como em tempos idos, uma questão que em momento algum uma análise da contemporaneidade, e até da forma como os homens se relacionam entre si, poderá descurar.

Posto isto, e dando como adquirido que a Retórica pode manifestar-se em qualquer um dos variadíssimos meios de comunicação, procurarão as páginas que se seguem proceder à observação de um caso concreto de (tentativa de) persuasão e do uso privilegiado do discurso como forma de procurar melhorar um conjunto de interlocutores. Ensinar-lhes a virtude, portanto. Falaremos então do realizador David Lynch e das suas recentes investidas além-cinéfilas no campo da disseminação religiosa e espiritual. Talvez o mais célebre seguidor das milenares técnicas de Meditação Transcendental, Lynch tem dedicado, nos últimos anos, grande parte do tempo de que dispõe a percorrer o mundo em palestras sobre os benefícios de semelhante técnica de introspecção. Mergulhos no eu, como lhes prefere chamar, recorrendo à metáfora. Sendo de sobremaneira conhecida a imensa legião de admiradores que os seus filmes conseguiram edificar, analisaremos de que forma o uso da palavra lynchiana pode surtir efeitos sobre o seu público, mesmo quando o assunto abordado se distancia em muito da área que o tornou reconhecido, o cinema.

DAVID LYNCH, NOVO MESTRE DA RETÓRICA.

É interessante debruçarmo-nos sobre os motivos que terão elevado os sofistas ao estatuto de primeiros humanistas. A Retórica que, em 444 AC, o filósofo Empédocles inaugurou, veio constituir a essência daquilo que, cinco séculos antes de Cristo nascer, os mestres sofistas defenderam até à exaustão – o poder da linguagem no momento em que se tenta persuadir alguém de um determinado raciocínio. Viajavam esses teóricos da argumentação por várias cidades, onde discursavam perante plateias de homens ávidos por novos ensinamentos. Como ideia-base da oratória sofista existia a convicção de que a virtude podia ser ensinada, com recurso ao logos, à palavra. A excelência de um indivíduo podia, pois, advir da compreensão que este obtinha, ou não, dos argumentos que com mestria lhe eram apresentados. Neste momento, começa a operar-se uma colectiva transformação de mentalidades que, porventura, poderá até ser encarada como possuindo mais importância do que o próprio nascimento da Retórica enquanto objecto de estudo e dedicação – é que, ao mesmo tempo que defendem o poder da aprendizagem e fazem o elogio da rendição ao domínio da argumentação, os sofistas declaram, de modo mais ou menos implícito, que são absurdas as explicações teológicas e/ou hereditárias acerca da nobreza de alguém. Repetimos: a virtude podia ser ensinada e, logo, virtuoso era quem dominasse tanto a forma, como o conteúdo do próprio discurso. Daí que o homem fosse, de facto, para a escola sofista, a medida de todas as coisas.

Avancemos agora até ao século XXI e centremos a nossa atenção num outro mestre da comunicação, autor de alguns dos mais prestigiados e controversos filmes dos tempos modernos – o cineasta David Lynch. Os registos apontam Missouri, no estado norte-americano de Montana, como local de origem do homem que obras como The Elephant Man, Twin Peaks ou, mais recentemente, INLAND EMPIRE tornaram símbolo do surrealismo em grande ecrã, da distorção da realidade e sua intercepção com o mundo dos sonhos. Contudo, há muito que David Lynch é visto por público e crítica como um homem que não parece sequer ser deste mundo, de tal maneira são distanciadas de todos os parâmetros de normalidade as longas e curtas metragens cinematográficas que tem tornado públicas, ao longo dos anos. Falamos, aliás, dos poucos homens do cinema cujo nome passou, por força da originalidade do seu portador, a não raras vezes assumir a forma de adjectivo. Lynchiano, sabe o culto homem moderno, é o sinistro, é o tempo não linear, são os diálogos ininteligíveis.

Não deixa de ser curioso, portanto, que o artista que mais se afasta dos cenários de explicação cabal das suas obras, preferindo oferecer ao espectador todo o mundo de interpretações que a sua experiência de vida e a sua interioridade lhe permitem, seja o mesmo que, de há uns anos a esta parte, tem percorrido inúmeras cidades do mundo, Lisboa inclusive, para explicar com detalhe, paciência e uma evidente paixão os benefícios de uma técnica de meditação a que há trinta anos se dedica – a denominada Meditação Transcendental. Saliente-se que é o próprio Lynch quem assume o seu repúdio pela dissecação interpretativa dos seus filmes, pelos finais fechados, pela palavra definitiva. Contudo, este misto de timidez, arrogância e postura artística que aplica ao trabalho que imprime em celulóide, Lynch faz questão de ultrapassar, no que à propagação das vantagens da Meditação diz respeito. E então sim, é vê-lo falar, ladeando as palavras com um dedilhar de dedos que lembra os tentáculos de um polvo e mostrando uma certeza e uma capacidade de argumentação às quais, opções de devoção religiosa à parte, é impossível não prestar admiração. Neste ponto, talvez seja conveniente fazer a ressalva de que não é o conteúdo daquilo que David Lynch tem propagado que interessa, para o presente trabalho. Em vez disso, é a observação do modo como o seu discurso poderá, eventualmente, ser assimilado pela comunidade de pessoas que se sentam para o ouvir. Em que medida a celebridade e o bom-nome de alguém pode ser suficiente para convencer outrem disto ou daquilo? E quais os argumentos que semelhante personalidade, consciente do efeito inebriante da sua palavra perante a plateia, utiliza para fazer crescer a comunidade (neste caso, espiritual) em que se insere? Não nos podia caber, portanto, uma análise crítica da Meditação Transcental, nem tão pouco um julgamento sobre a validade dos seus pressupostos. Interessa-nos a retórica de Lynch para ilustrar a possibilidade de que aufere a sua linguagem para moldar a forma como milhares de pessoas - os seus fãs e os espectadores das duas palestras - passam a percepcionar a realidade do mundo e das coisas. Ou, pelo menos, o modo como uma redobrada atenção à exposição dos argumentos lynchianos pode motivar a contemplação de propostas espirituais que, de outro modo, não seriam sequer conhecidas pelo grande público.

Ao lermos Catching The Big Fish – Meditation, Consciousness and Creativity, a um só tempo a biografia e o guia espiritual que David Lynch publicou, em 2006, há outro dos dados adquiridos da Retórica que se mostra claro e evidente: a efectividade (e a eficiência, se quisermos) de um dado argumento reside na sua verosimilhança. De acordo com esta perspectiva, a aparência de verdadeiro sobrepõe-se à real necessidade de verdade daquilo que é dito e/ou escrito. E eloquência Lynch possui, quando fala. O tom nasalado com que cospe certezas absolutas acerca da supremacia cognitiva de quem medita como ele, a par da postura de génio louco que três décadas de cinema colaram à sua imagem, são suficientes para que o público beba de cada uma das suas palavras. Ou, no caso de Catching The Big Fish, de cada uma das letras que escreve. De modo inteligente salteando breves capítulos com curiosidades acerca da rodagem de Lost Highway ou Mulholland Drive e apaixonadas reflexões acerca das transformações que a Meditação Transcendental operaram na sua própria vida e carreira, Lynch sabe que a sua mensagem vai ser compreendida. Não é por acaso, aliás, que a palavra criatividade é incluída no título do livro. Ao invocá-la, o autor sabe que vai conseguir captar a atenção de quem vê nele um modelo de originalidade artística. E é sem pejo que imprime, com todas as letras, o seguinte relato: “Medito pela manhã e durante a tarde, durante cerca de vinte minutos de cada vez. Depois vou à minha vida. E percebo que a alegria de fazer as coisas aumenta. A intuição aumenta. O prazer de viver cresce. E a negatividade diminui.”

No contexto sobre o qual nos estamos a debruçar, importa também dar algum ênfase (mas não todo) aos factores de autoridade e de legitimidade de quem discursa, enquanto forma de atalhar caminho no processo de prender a atenção e desenvolver a reflexão de quem escuta. Sejamos francos: o Centro de Congressos do Estoril não estaria repleto de gente, em Novembro do ano passado, se tivesse sido dado como garantido que o cineasta David Lynch iria discursar apenas sobre o modo como medita. Foi a legitimação popular da sua obra cinematográfica e o relevo cultural que a sociedade mediática em que vivemos lhe atribui que ali fez dirigir-se centenas e centenas de pessoas. Que decerto estariam mais dispostas a ver solucionados em discurso directo os mistérios que o derradeiro capítulo de Twin Peaks não encerrou, ou as ideias daquele fascinante homem para o seu próximo filme. Mas Lynch é um mestre. E por mestres eram conhecidos também aqueles que, séculos antes, pregavam sobre o logos e sobre a sua condução a um mais alto nível de existência e de gratificação interior.

Não será necessário, contudo, recuar aos anos Antes de Cristo para estabelecer um paralelo entre a essência persuasiva da Retórica e o uso que, mesmo eventualmente desconhecendo esses princípios, David Lynch agora faz dela. Chäim Perelman, importante filósofo e estudioso do Direito, morreu há 24 anos apenas, em 1984. E é a ele que é unanimemente dirigida a designação de mais importante teórico da Retórica, no século XX. A Nova Retórica que Perelman desenvolveu e aprofundou, em conjunto com Olbrechts-Tyteca, funda-se sobre a seguinte premissa: uma vez que a argumentação almeja captar a adesão/aderência daqueles a quem é dirigida, ela relaciona-se, na sua plenitude, com essa mesma audiência que se pretende influenciar. Por outras palavras, e regressando ao exemplo que rege esta reflexão: é através da enumeração de exemplos práticos relacionados com aquilo que apaixona o seu público – o cinema – que David Lynch elabora o seu discurso a favor da Meditação Transcendental. Os mergulhos no eu que, a um ritmo de dois por dia, o cineasta defende, são, garante, o método que utiliza para chegar à excelência das ideias que os seus filmes demonstram. É por ter estado em harmonia consigo próprio, jura, que Lost Highway surge àquela mesma audiência como um produto de cinema tão sensacional. O valor de qualidade e originalidade que Lynch sabe que os estudantes de cinema, críticos de arte e jornalistas que se sentam para o ouvir reconhecem no seu trabalho é algo a que recorre, nas já referidas palestras, para justificar não só as vantagens, como até a necessidade da Meditação. Referimo-nos, neste instante, ao comummente reconhecido valor de utilidade, de que Perelman também falou. Nas páginas de Catching The Big Fish, exalta-se a convicção de que a meditação aumenta a criatividade. E no discurso de Lynch está, por conseguinte, implícita uma premissa que apenas o pudor o pode impedir de verbalizar: se querem ser como eu, meditem, um argumento quase-lógico, que pouco deve ao raciocínio das coisas matemáticas.

Perelman referiu-se também, a propósito dos pontos de contacto que um versado orador deve deter entre si e a audiência que o encara, ao universalmente reconhecido valor da justiça. E também a este respeito podemos focar o nosso interesse sobre outro dos argumentos que David Lynch invocou para enaltecer a Meditação Transcendental. Este último, acrescente-se, assumidamente não rejeita a hipótese de evidência que muitos opositores do discurso retórico reclamam. É matemático e científico. “A fórmula para a paz no mundo”, explicou, em 2005, em entrevista à revista norte-americana Newsweek, “é um conjunto de pessoas equivalente à raiz quadrada equivalente à raiz quadrada de 1% da população mundial”. Um total de oito mil praticantes avançados de criação de paz “a trabalhar ininterruptamente, como numa fábrica” seria, portanto, suficiente para disseminar toda a energia positiva de que os homens precisam para erradicar a guerra e o medo. Falámos em justiça? Que melhor defesa poderá qualquer prática requerer senão aquela que cientificamente a equipara à obtenção de paz no mundo? E é ou não é David Lynch uma sumidade da persuasão?

Já aqui se disse que a técnica – a quem muitos chamam arte – da Retórica estende os seus tentáculos argumentativos a tantas formas e meios de comunicação quantos aqueles que consigamos enumerar. Na música (Para não dizer que não falei da Flores, de Geraldo Vandré: retórica contra a ditadura), na pintura (o quadro Guernica, de Picasso: retórica contra o fascismo e a guerra), no cinema (O Triunfo da Vontade, da realizadora alemã Leni Riffenstahl: retórica a favor do regime nazi e da supremacia do seu líder). Contudo, é na esfera da publicidade que os efeitos persuasivos da Retórica se tornam por demais evidentes. Os departamentos de marketing das empresas esforçam-se por chegar à fusão ideal entre a mensagem e o canal (outdoor, televisão, panfleto, etc) no qual essa mesma mensagem vai ser difundida, sendo que o objectivo último desse exercício é convencer o público-alvo a quem se destina a comprar aquele determinado produto (e não outro).

A este propósito, não podemos deixar de referir um caricato exemplo que envolveu David Lynch, prolífero realizador de anúncios publicitários no espaço de tempo que lhe resta entre a arte e a espiritualidade. Ainda que, por uma vez, a sua colaboração não tenha sido voluntária ou intencional. E relatamos: num dos muitos conteúdos-extra que a edição especial do DVD de INLAND EMPIRE oferece, Lynch é entrevistado acerca do advento dos novos dispositivos móveis de captação e usufruto de som e imagem. Contra a cortina vermelha que é elemento recorrente nos seus filmes e de telemóvel na mão, o realizador mostra-se exasperado perante a mera hipótese de o cinema poder (e isso já está a acontecer) passar a ser apreciado num mínimo visor de telemóvel. Que isso não é cinema, acusa, irado. Que não se pense que ver um filme num minúsculo ecrã é algo que em algum universo se pode comparar à magnitude um grande ecrã, isso sim cinema. It’s such a sadness that you’d think that you’ve seen a film on your fucking telephone. Get real. Pois bem. A opinião de um famoso realizador sobre o cinema em miniatura é esta. Mas realmente inteligente foi o anónimo emissário da Apple, ou talvez apenas um fervoroso adepto da marca, que recortou a pequena sequência da entrevista em que Lynch mostra o seu repúdio e lhe acrescenta, ao fim, o logótipo da iPhone. Acrescentar a melodia dos reclames oficiais do telemóvel-maravilha àquela manipulada sequência Lynch+logo e colocar o produto final no Youtube foi quanto bastou para que a marca passasse a beneficiar de um anúncio com a distinta colaboração de David Lynch. Quer para os admiradores do seu cinema, quer ainda para os seus detractores (que também somam um grande número), a eloquência daquele homem a revoltar-se contra um determinado produto funciona, no manipulador mundo da publicidade, como um dificilmente igualável chamariz. O poder retórico do célebre meditador foi, desta feita, usado contra si. Ou, no mínimo, utilizado em favor de algo que ele confessou detestar… Lynch 0, iPhone 1.


CONCLUSÃO.

Tal como sucede com uma infinitude de outras mensagens, também do discurso do cineasta David Lynch é possível extrair uma grande dose de domínio sobre a técnica da Retórica. Honra lhe seja feita a ele e a quem defende a disciplina sobre a qual estas páginas se debruçaram como uma arte – Lynch, génio criativo do cinema, da fotografia, da pintura, da música, é realmente dotado de um poder persuasivo que não muitas vezes encontramos noutras gentes do nosso tempo. E, qual sofista em busca da melhoria do seu aluno e do alcance da sua virtude, Lynch tem percorrido mundo e meio em defesa do modo com que, desde há trinta anos, resolveu adubar a sua criatividade: a meditação transcendental. Procuraram as linhas que aqui encerramos demonstrar a necessidade que um orador tem de buscar, no seio da sua audiência, as afinidades que lhe permitam manter sobre si e sobre as suas palavras o foco do interesse. E mostrámos como esse foco está desde logo aceso, caso o prestígio e a mestria de quem fala seja unânime entre quem o escuta. No caso do público que assiste às palestras daquele mestre do cinema, é com certeza.

Fazendo ainda referência à Nova Retórica de Chäim Perelman e ilustrando com um caricato exemplo a supremacia do poder de argumentação na área comunicacional da publicidade, temas que nenhuma reflexão sobre a Retórica pode deixar de abordar, pretendemos demonstrar as motivações que sempre se escondem por detrás de um discurso e, ainda que modo subtil e irónico, proceder a uma análise crítica desse mesmo discurso e/ou texto a luz das escolhas que nele estão implícitas. Uma vez tornadas explícitas as motivações de quem junta uns pozinhos de cinema a um texto que apela a algum tipo de reconversão espiritual, todo um novo leque de perspectivas sobre esse mesmo texto se abre. E quantos fãs de Twin Peaks não pagarão já as suas quotas na David Lynch Foundation for Transcendental Meditation.